Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 outubro, 2015

Um dia prometeste deixar no estuário da nossa cama






Não pensámos, não, que fosse eterno. Por vezes fingíamos acreditar mas ríamo-nos logo a seguir para que ficasse claro que sabíamos que um dia terminaria. O sabermos que era efémero dava mais valor ao que tínhamos. E, enquanto o tínhamos, sentíamos que era eterno mas não o dizíamos, não queríamos que o nosso amor se tornasse risível. 
Tecias sedas com os meus cabelos entre as tuas mãos e dizias vou tecer um manto invisível para nos cobrirmos quando dormirmos na beira do rio e eu deixava que o calor das tuas mãos, desfiando-me lentamente, me transportasse leito fora como se já pelo rio o meu corpo navegasse, junto ao teu, junto ao teu. 
Tanto que eu gostava, na cama, de sentir a pele do teu corpo junto à pele do meu corpo disponível, teu, teu. 
As tuas mãos percorriam os contornos do meu corpo, tão macio, dizias tu, e eu gostava de te ouvir, segredando-me convites indecentes ao ouvido e isso era um segredo teu, só teu, só teu. 
As minhas pernas enleavam-se ainda mais nas tuas, e eu deixava que o teu corpo respirasse sobre o meu, navio suave deslizando por um rio vibrante, água e fogo, flores e vento, pássaros e sonhos, amor meu, amor meu.
Lembras-te? 

Lembras-te dos nomes que usavas para dizer o meu nome? Dos nomes que usavas para dizer o teu amor? Dos nomes que usavas para dizer o teu desejo, o meu desejo? Lembras-te?

Lembras-te de como me abraçavas, a tua boca escondida pelo meu cabelo, e tu, indecoroso amor meu, dizendo maldades, inquietando-me? E do rio, lá em baixo, que não sabia refrescar o calor do meu corpo, lembras-te?

E depois um dia foste-te. Não te despediste. 

Nunca mais te vi. Nada sei de ti. Nem sei se ainda sei o teu nome. Nem sei se ainda sei o meu nome. Nem sei se ainda existo. Sem ti, nem sei se alguma vez existi.

Fecho os olhos e tento recordar-me do nome que dizias quando dizias o meu nome. Mas o que ouço é apenas uma voz branca, sem palavras. Uma voz vazia, uma voz vazia desfiando memórias sem olhos, perdidas na cama que era nossa e que hoje está vazia.

Meu amor que te amo tanto, não voltes para mim, deixa-te estar no recanto mais profundo do meu sangue, lá onde não poderás voltar para ti. Amor meu, amor meu.




que foi que    de repente     eu disse
para que começasses a dar outros nomes ao que
pensávamos ser eterno    e habitar no
mais profundo recanto do nosso sangue

ouve-me   ouve-me   e dá depois o
nome que quiseres às mãos que um dia
prometeste deixar no estuário
da nossa cama

onde hoje apenas
se desenha o côncavo lugar do que
ardilosamente roubaste na partida


[de Alice Vieira in Os armários da noite]

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As fotografias foram feitas no Ginjal

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