Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 setembro, 2014

Tu continuarás para sempre nua no meu poema.



Não sei dizer palavras que te dispam, amor, como em tempos as minhas mãos, sôfregas, te despiam. Nem tu, amor, as sabias dizer quando, inocente, te despias mostrando o teu corpo de jovem mulher. Nunca fomos de palavras. Olhava-te, então, com olhos líquidos de desejo, um soluço percorrendo o meu corpo impaciente, e tu, improvisando gestos que julgavas só teus, oferecias o teu corpo mudo, ardente.

Dias e dias foram passando e nós sempre unidos, os gestos que nunca se esqueceram, o amor que se foi adoçando, o desejo que se foi alongando, e as palavras que nunca aprenderam a traduzir o que sentíamos.

A vida trouxe-nos até aqui, a este mar largo que contemplamos em silêncio. O tempo corre com vagar, azul, umas vezes macio, outras com aspereza. Assim é o tempo, assim é a vida. Enquanto nos tivermos um ao outro a vida será boa e o tempo amigo.

Quando chegarmos a casa, despir-te-ás para mim, com vagar e compreensão, por vezes com um resto de malícia, por vezes ainda com um resto de inocência, e eu olharei o teu corpo enrugado e flácido e não sentirei a sofreguidão de então mas sentirei uma ternura imensa, amor, porque na tua pele estão muitos gestos meus de carinho e desejo, gestos que jamais voarão do teu corpo pois há muito aprisionaste o meu amor. Na tua pele já eu habito há muito tempo. Não sei dizer-te isto em palavras mas o nosso silêncio guarda mil beijos, mil afagos, mil poemas, mil palavras de um imenso amor.


No pequeno jardim do Ginjal, olhando o Tejo que corre para o oceano, de frente para uma Lisboa bela e silenciosa




O tempo permanece
Apanhado entre os livros.
Por este prodígio de apreensão,
Heraclito continua a banhar-se
No mesmo rio,
Na mesma página.
Tu continuarás para sempre
Nua no meu poema.



['Arte do Tempo' de Juan Manuel Roca in 'Os cinco enterros de Pessoa', selecção e prólogo de Lauren Mendinueta e numa tradução de Nuno Júdice]






Bill Evans - My Foolish Heart



Vives como escreves
escreves como vives
com a sensibilidade
profunda 
de um poeta
com a escrita solta
atenta
de um prosador
vives
onde a vida se liberta
com o olhar deslumbrado de uma criança
vida adulta a tua
pousada
vivida

por todo o lado.


Joaquim Castilho