Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 julho, 2012

Quanto maior a alma maior o deserto


Em silêncio olho o mundo aqui à minha frente. Não sei se o mundo é só isto. Creio que haverá mais para além do que vejo mas não o conheço e nunca o vou conhecer, sei bem disso. 

Gostava de fazer parte deste mundo que vejo aqui, tão perto de mim, gostava de poder andar com uma camisa com botões de punho, uma gravata às riscas, um casaco e uma pasta na mão, gostava que me cumprimentassem, gostava de poder entrar em salas com ar condicionado. Gostava de me sentar a uma secretária, que me passassem uma chamada, gostava de andar num corredor alcatifado com uma porta automática ao fundo. 

Ou gostava de ter uma mulher e filhos e ir com eles passear ao castelo e espreitar para este lado por um binóculo. E, depois, comprava um olá a cada miúdo e, à minha mulher, levava-a, a seguir, aos saldos no fórum.

Ou gostava de trabalhar num banco, de ir com os colegas beber café e toda a gente saber 'estes são os que trabalham ali no banco'. E gostava que, no fim do mês, depositassem o ordenado na minha conta e que eu pudesse telefonar para um colega, dizendo para aplicar uma parte em títulos. 

Gostava que a minha vida não fosse este deserto.

Ou gostava de entrar num veleiro e ir pelo rio fora, sem saber a que terra ia dar. Gostava de ter um boné branco de marinheiro. Gostava tanto que este rio aberto me levasse para muito longe ou que, não indo, ficando apenas aqui sentado a olhar em silêncio, quando aqui venho, ao menos, pudesse sonhar coisas sempre diferentes mesmo que tudo isso não passe de uma intangível miragem.



[Já abaixo da imagem do homem que olha, um pequeno e belo poema de Luís Veiga Leitão e, logo a seguir, de novo, a música pelas mãos de Jordi Savall e outros, entre os quais, a sua filha]


Olhando o mundo ou a ausência dele
De frente para o Tejo e para Lisboa: o Terreiro do Paço e, lá em cima, o Castelo de S. Jorge


                                  É no silêncio do caminho aberto:

                                  Quanto maior a alma maior o deserto
                                  maior a sede e a miragem
                                  do mundo à nossa imagem


['Homem' de Luís Veiga Leitão in 'Os poemas da minha vida' de Miguel Veiga]

Jordi Savall - Folias de Espanha (Jordi Savall, viola da gamba-;Rolf Lislevand, guitarra barroca; Arianna Savall, arpa; Pedro Estevan, percussão; Adela Gonzalez-Campa, castanholas)


28 julho, 2012

Na curva perigosa dos cinquenta derrapei neste amor


Um dia a mulher viu aquele homem, tantas vezes visto antes, tantas vezes odiado (tantas partidas que a vida nos prega), tantas vezes invisível, e notou nele um olhar e um sorriso diferentes. E o homem olhou a mulher com uma ternura e um desejo muito cúmplices e, aos poucos, qualquer coisa começou a nascer entre os dois. 

A vida estava prestes a separá-los mas, na curva da despedida, aproximaram-se com muito amor. 

Sem perceberem como, tornaram-se inseparáveis, acordavam e adormeciam a pensar um no outro e todo o dia era uma longa espera até que se pudessem encontrar. Estarem juntos era uma felicidade, uma muito inesperada felicidade. Os sorrisos, os beijos, os afagos, as palavras, o desejo, tudo os aproximava.

O tempo parava para que as confidências fluíssem, o tempo parava para que as horas de intimidade se fixassem indelevelmente nas suas memórias. Olhavam-se com vagar, davam-se as mãos, juntavam as almas e o tempo parado, o sol fixo na parede. Atrás das portas, esquivos, roubavam-se carícias, eram meninos, eram adolescentes de primeiro amor. E a mulher sonhava que passeavam num jardim, de mãos dadas e o homem sonhava que se encontravam num hotel, numa cama com vista sobre a cidade, numa serra com vista para o mar.

E as tardes eram infinitas e o amor era apaixonado e um cavalo corria doido nos seus peitos. Na curva perigosa dos cinquenta, despediram-se um dia para nunca mais, dois imprevistos amantes, dois amantes para sempre.



[Logo abaixo da imagem de um amor em fim de tarde, poderão encontrar a beleza da música interpretada por Jordi Savall]



À beira Tejo, em Belém


                                       Na curva perigosa dos cinquenta
                                       derrapei neste amor. Que dor! que pétala
                                       sensível e secreta me atormenta
                                       e me provoca à síntese da flor

                                       que não se sabe como é feita: amor,
                                       na quinta-essência da palavra, e mudo
                                       de natural silêncio já não cabe
                                       em tanto gesto de colher e amar

                                       a nuvem que de ambígua se dilui
                                       nesse objecto mais vago do que nuvem
                                       e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

                                       verdade tão final, sede tão vária,
                                       e esse cavalo solto na cama,
                                       a passear o peito de quem ama.




['O quarto em desordem' de Carlos Drummond de Andrade in 'Nova Reunião', 23 livros de poesia]

Jordi Savall - La Folia (Sec. XV)


20 julho, 2012

Ariane é um navio e chegou num dia branco a este rio Tejo de Lisboa


Ariane veio de muito longe, chegou a Lisboa. Deslizou no Tejo, trazendo atrás de si um fio imaginário. É um invisível fio feito de sonhos. Com Ariane, o fio percorre o infindável labirinto que são os rios e mares e oceanos de todo o mundo.

Percorre todas as distâncias, vem do outro lado, e, aqui chegado, enfeita-se de velas, ilumina os mastros, orgulha-se da sua bandeira e, por onde passa, vai levando sonhos, vai acrescentando sonhos. E vai deixando saudades.

As gaivotas andam doidas, não costumam ver noivas assim no Tejo, ou navios carregados de brilhos e sonhos, e, de longe, olham ciumentas tanta beleza. Gostariam de ser convidadas a participar nesta festa mas, assim, esvoaçam e soltam gritos, disfarçam o despeito.

Mas os dias de descanso no rio não são longos e um dia destes levantará âncora e, com majestade, abandonará Lisboa levando atrás de si a luz branca da cidade e os sonhos de quem um dia desejou cair, de corpo inteiro, nos seus braços, os braços de Ariane, o veleiro.


[Logo a seguir à imagem dos cruzeiros no Tejo, um poema de Miguel Torga que, incompreensivelmente, andou, atá agora arredado do Ginjal. Abaixo, um momento musical de que gosto bastante, de Béla Bartók]



Os grandes cruzeiros em Lisboa



                           Ariane é um navio.
                           Tem mastros, velas e bandeira à proa,
                           e chegou num dia branco, frio,
                           a este rio Tejo de Lisboa.

                           Carregado de Sonho, fundeou
                           dentro da claridade destas grades...
                           Cisne de todos, que se foi, voltou
                           só para os olhos de quem tem saudades...

                           Foram duas fragatas ver quem era
                           um tal milagre assim: era um navio
                           que se balança ali à minha espera
                           entre as gaivotas que se dão no rio.

                           Mas eu é que não pude ainda por meus passos
                           sair desta prisão em corpo inteiro,
                           e levantar âncora, e cair nos braços
                           de Ariane, o veleiro.


['Ariane' de Miguel Torga (escrito em 1940 no Aljube) in 'Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa' organizada por Eugénio de Andrade]

Béla Bartók - Yuli Turovsky conduz os Músicos de Montreal na interpretação de Música para cordas, percussão e celesta


17 julho, 2012

Num veio de luz, vê desfazer-se a açucena de açúcar, estremecida e pálida


Que dores, que dores escondes dentro desses teus olhos secos? Porque olhas assim, sem ver? Que dores são essas que te levam a essa agonia branda? Que tristeza é essa, que nem voz consegue ter?

Passam as águas a caminho do mar, passam os quase nocturnos veleiros, passam os casais abraçados, as crianças correndo, a luz vai-se esvaindo, e tu, aí, sem nada ver, a olhar com os olhos vazios.

Fazias mimos, bordados delicados, doces enfeitados, poemas de amor e agora, aqui na beira do rio, desfazes-te de tudo, de tudo, sem pressa, sem piedade. Os mesmos dedos que antes escolhiam ingredientes, com mil cuidados, uma cor suave, uma palavra gentil, o açúcar no ponto, o ponto pé de flor, são os mesmos dedos que, agora, alheados, se desfazem de tudo o que laboriosamente foi antes feito. 

Porquê? Que dor é essa?

O corpo seco, os seios tristes, a pele baça, o cabelo escorrido, os olhos parados, és a imagem de uma mulher dorida de amor.

Depois, com os lábios desolados, com um cansado gesto de mão, ouço que dizes baixinho, adeus. E uma outra vez adeus, e uma outra vez, e uma outra, até que o som se esvai e ficas parada esperando que a noite te cubra. Precisas que a noite chegue para, então, poderes velar, em silêncio e recolhimento, o corpo sem vida de um desejo e de um amor que foram fortes demais.



[Logo abaixo da imagem de uma jovem mulher sozinha na beira de um rio que caminha para o oceano, poderão ver um belo poema de Ana Marques Gastão e, logo depois, o piano traz-nos, de novo, Béla Bartók.]


Há semanas atrás, fim de tarde em Belém


                     Retirando as mãos da nuca,
                     sob a pele de exuberância
                     prudente, a mulher reconhece
                     os nós d'água, destino de queda
                     em ascensão. Num veio de luz,
                     vê desfazer-se a açucena
                     de açúcar, estremecida e pálida.

                     Já não atraídos pelo desastre,
                     os lábios retomam a consciência
                     do exagero ébrio de quem por de
                     mais ama e, por isso, a mulher
                     vai passajando a dor velada,
                     vigiando o rigor de um desejo
                     tão corporeamente espiritual.



                     ['Açucena de açúcar' de Ana Marques Gastão in 'Adornos']

Béla Bartók - Alon Petrilin interpreta o Allegro barbaro Sz. 49


16 julho, 2012

Volta a romper, ferir, acariciar a mais longínqua das estrelas


A aragem tépida que vinha do rio trazia-me uma toada lenta, esparsa. As gaivotas voavam brandas, as pessoas de fora passavam olhando com assombro a beleza do outro lado, um rapaz passava de bicicleta e, a instantes, como se viesse trazido por um leve sopro, chegava-me um breve acorde, notas soltas.

Talvez uma gaivota estivesse trazendo a música dos céus. Ou talvez uma nuvem tivesse deixado cair o som dos deuses.

Até que, antes encoberto pelo farol, vejo um rapaz tocando guitarra. Passei junto a ele. A música confundia-se com o rumor das águas, com os sons do barco que atracava. Mas, indiferente ao mundo, o rapaz dedilhava e a música subia no ar. Deixei-me estar imóvel. Um momento único. Tudo quase demasiado perfeito. 

De que falavam os dedos do rapaz ao dedilhar as cordas da sua alma? Da sua vida? Do seu amor? De males que ainda está apenas a começar a conhecer? De como o mundo parece um deserto quando nele falta o sorriso de que nos alimentamos?

Ou estaria simplesmente a agradecer a felicidade sem preço de estar vivo, de estar a fazer música, de se sentir abençoado num local tão sagrado como aquele?

Sem vontade, afastei-me mas dentro de mim levava ainda a música que ia acariciando aquele espaço azul e trémulo no qual as palavras se rarefazem.



[Abaixo da imagem, um poema mais de Eugénio de Andrade, desta vez sobre a música e, logo a seguir, justamente, a música em festa: é a abertura da semana que vou dedicar a Béla Bartók]



Há semanas atrás, música à beira Tejo, olhando Lisboa, a Bela



                       A música é assim: pergunta,
                       insiste na demorada interrogação
                       - sobre o amor?, o mundo?, a vida?
                       Não sabemos, e nunca
                       nunca o saberemos.
                       Como se nada dissesse vai
                       afinal dizendo tudo.
                       Assim: fluindo, ardendo até ser
                       fulguração - por fim
                       o branco do deserto.
                       Antes porém, como sílaba trémula,
                       volta a romper, ferir,
                       acariciar a mais longínqua das estrelas.


                       ['É assim, a música' de Eugénio de Andrade in 'Os lugares do lume']


Béla Bartók - A Rajko Orchestra interpreta Rumanian folk Dances


13 julho, 2012

Se conseguires entrar em casa e alguém estiver em fogo na tua cama


De noite, antes da madrugada raiar, as gaivotas juntam-se no jardim ao pé da minha casa. Vêm do rio e, da minha cama, eu ouço-as, são gritos longos, sentidos. A essa hora chegam-me pois, da noite, desalentos soltos, lamentos agudos. Sinto vontade, então, de abrir a janela do quarto, chegar-me à varanda e voar para junto delas.

Em círculo no relvado, andando com as suas longas asas quase por terra, as gaivotas estão intranquilas, desafiam-se, choram. Gritam, gritam e os seus gritos são viscerais, parecem carregados de lágrimas. Mas também podem ser gritos de desafio, de celebração. Talvez seja um ritual, talvez festejem apenas o dia que vai chegar, não sei.

A esta hora a casa está em silêncio. Pela janela chega uma quase invisível claridade, vestígios sombrios da noite. De olhos abertos vejo então as sombras que se desenham nas paredes. Penso que são os anjos que me protegem, talvez os meus que já partiram e que agora voltam, com as gaivotas, para ver que estou bem, ou para que eu lhes conte os meus sonhos, os meus medos, os meus segredos. Podiam ser deles os gritos que ouço mas sei que não são, os gritos vêm do jardim, das sombras brancas que clamam pela chama do dia. As paredes do meu quarto estão em silêncio, sorriem mas sorriem em silêncio. 

Passado algum tempo, ouço o bater de asas, param os gritos, entra no quarto a primeira claridade do dia. Nessa altura os anjos partem também, satisfeitos por me saberem tranquila.

Fecho, então, os olhos e imagino que vou com as gaivotas a caminho do rio, rasgando os céus que se descobrem com os tons da aurora, que vou a caminho do mar, voando ao lado dos navios que se fazem ao mundo. E adormeço feliz, protegida, sem medos. 



[Logo abaixo do espaço azul por onde passam caravelas brancas, poderão ver um belo poema de Al Berto e, logo a seguir, o som dos anjos desce, pela mão de Salieri para nos aconchegar]



Há algumas semanas, belo veleiro no Tejo com o Padrão das Descobertas em fundo


                         se conseguires entrar em casa e
                         alguém estiver em fogo na tua cama
                         e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
                         e do tecto cair uma chuva brilhante
                         contínua e miudinha - não te assustes

                         são os teus antepassados que por um momento
                         se levantaram da inércia dos séculos e vêm
                         visitar-te

                         diz-lhes que vives junto ao mar onde
                         zarpam navios carregados com medos
                         do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
                         a morada de uma vida inteira e pede-lhes
                         para murmurarem uma última canção para os olhos
                         e adormece sem lágrimas - com eles no chão


                         ['Incêndio' de Al Berto in 'Horto de Incêndio']

Antonio Salirei - A Orquestra Filarmónica e o Coro do Teatro alla Scala sob a direcção do maestro Riccardo Muti interpretam Salve Regina e Magnificat


A liberdade que dos deuses eu esperava quebrou-se


Andava por ali, junto ao rio, andava enchendo os pulmões de ar fresco e os olhos de azul. Pensava se poderia um dia partir: chegar-se ao outro lado, ao cais de embarque, subir a bordo, ir sem saber para onde. Achava que sim, que poderia, que bastaria querer.

Mas apenas olhava o rio e os grandes paquetes, e deixava-os partir. No entanto, sentia-se livre para o fazer e isso bastava-lhe. Sentia que, quando precisasse, os deuses o ajudariam a fazer-se ao grande mundo.

Então parava junto à roseira que crescia bravia junto ao rio, colhia rosas e levava-as para a sua deusa. voltava, pois, a casa.

Até que um dia se viu sozinho. E viu que as rosas que trouxera para casa nos dias anteriores tinham sido atiradas para o lixo. Jaziam sem pétalas, secas, prova infeliz da fragilidade do amor. Nesse dia percebeu que os deuses o tinham abandonado. E sentiu que nem partir conseguiria, para sempre ficaria exangue na beira do rio.


[Abaixo da imagem do homem que colhia flores, poderão ler um poema da grande Senhora dos Mares, Sophia. Logo abaixo um cântico e é a semana dedicada a Salieri quase a chegar ao fim]



Há semanas atrás, no Ginjal  apanhando rosas junto ao Tejo.
(Lisboa e a Ponte 25 de Abril logo ali)


                             A liberdade que dos deuses eu esperava
                             quebrou-se. As rosas que eu colhia,
                             transparentes no tempo luminoso,
                             morreram com o tempo que as abria.


                             [Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'No tempo Dividido']

11 julho, 2012

Boca cuja doçura me encanta docemente


Diz-me devagar palavras de amor, diz-me baixinho palavras efémeras, mesmo que os meus ouvidos te não ouçam, palavras doces, breves, meu amor; deixa que eu adivinhe o que dizes apenas olhando a tua boca.

Quero ler os teus lábios, quero perceber as entoações e os carinhos pela forma como arqueias o lábio de cima, ou os lamentos pela forma como o de baixo se dobra em beicinho.

Espera, não te mexas, nem digas nada, deixa que eu adivinhe os segredos que guardaste da nossa última noite de amor, deixa-me ver-te em silêncio, meu doce amor, deixa, deixa.

Fala agora mas ainda baixinho, um sussurro apenas, e deixa, pois, que eu adivinhe os suspiros de amor, deixa que os teus lábios, quentes e húmidos, me digam com sorrisos o que os teus olhos escondem, deixa meu amor, deixa.

Ah, deixa-me, deixa-me olhar a tua boca cuja doçura me encanta, deixa-me sentir de perto a respiração do teu corpo, e diz flor, pássaro, asa, árvore, sombra, luz, diz e deixa que eu sinta o perfume das tuas palavras.

Diz, meu amor, mesmo que eu não te ouça, mesmo que eu não te perceba. Diz, diz, diz muito baixinho.

Deixa que eu me aproxime, deixa que os meus lábios se entendam com os teus, deixe que a tua boca diga à minha que muito a quer, porque a minha está doida, meu amor, está perdida por se entender com a tua. Deixa que falem, em silêncio, sobre todas as graças e prazeres deste mundo, deixa, deixa meu amor, deixa.



[Já abaixo da imagem deste casal banhado de azul e doçura, poderão ver um belo poema de Rui Rocha que aqui, hoje e em boa hora, se estreia. Logo a seguir uma bela interpretação de uma música belíssima de Salieri]



Junto ao Tejo, há umas semanas, num dia de sol e de azul radioso


                      boca cuja doçura me encanta docemente
                      eu me encontro nas margens quentes do teu toque
                      boca que guardas o silêncio das noites
                      eu te escuto no sabor quente de todas as palavras
                      boca que fechas os segredos dos dias
                      eu te leio na geometria húmida das tuas linhas
                      boca que respiras as graças do mundo
                      eu te cheiro nos aromas frescos dos sorrisos e suspiros
                      boca cuja doçura me encanta docemente
                      eu me perco de doçura, de medo e de espanto


                      ['A Catherine des Roches (1550-1587) de Rui Rocha in 'A Oriente do Silêncio'

Antonio Salieri - Diana Damrau interpreta 'Europa Riconosciuta'


09 julho, 2012

Quero ficar sozinha neste espanto


A casa está silenciosa a esta hora da tarde. De vez em quando um grito de criança, uma batida, um ranger, sobe da rua lá em baixo. 

Desloco-me de novo até à janela, um pequeno percurso que agora tem que ser estudado, percorrido com vagar. Abeiro-me para sentir bem a aragem que a lonjura me traz.

As ruas estão quase desertas, ouço um cão de uma moradia lá ao fundo. E depois há a imensidão do Tejo. Lisboa iluminada pelo sol da tarde, a Vasco da Gama graciosa, um navio que rasga o rio deixando atrás de si um véu branco de espuma. 

O rio está também silencioso nesta tarde quente e parada de verão. São assim as tardes passadas em casa, envolta em silêncio e espera.

Escolho uma música mas, mal essa acaba, não quero ouvir mais nada. Apenas estes fiapos que chegam da rua. Sinto falta das caminhadas pela beira do rio, sinto falta das árvores sob cuja sombra fresca gosto de passear. Sinto falta da proximidade física das águas que correm, o cheiro a isco e a peixe que os pescadores trazem consigo. 

Até lá, neste intervalo forçado, espero envolta no silêncio expectante da tarde.



[Logo abaixo do rio avistado da minha janela, um poema de Sophia, e, a seguir, mais uma música de Salieri]



Um barco vindo do lado de lá parece sair de um telhado, com a Ponte Vasco da Gama em fundo



                        Eu só quero silêncio neste porto
                        do mar vermelho, do mar morto

                        perdida, baloiçar
                        no ritmo das águas cheias

                        Quero ficar sozinha neste espanto
                        dum tempo que perdeu a sua forma

                        Quero ficar sozinha nesta tarde
                        em que as árvores verdes me abandonam.



['Intervalo I' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Mar', antologia]

Antonio Salieri - Michael Thrift dirige a SYO Sinfonietta Orchestra na interpretação da Sinfonia Veneziana


08 julho, 2012

Meu Deus, a natureza é branca


Por estes dias o mundo chega-me pela família e amigos que me trazem afectos e sorrisos, pela televisão que me traz vulgaridades, pelo computador que me traz diversidade e, claro, pela janela que procuro em busca de vida.

Desloco-me, pois, muito lentamente, até à janela. 

Passos iniciais em busca de espaço, de largueza. Busco palavras, sons, busco cores, alegrias, busco pássaros exóticos, flores loucas, busco imagens exuberantes, busco a vida em festa mas, em vez disso, a janela hoje de manhã mostra-me um véu branco, quase opaco, e o rio e o céu e as casa e tudo o mais está branco, silencioso, imóvel. Apenas uma gaivota, longínqua, cruza o espaço mas não se aproxima. Vejo-a de longe, oblíquo traço escuro que quase rasga a paisagem que hoje é uma gaze que encobre feridas, uma paisagem branca que se recusa a materializar-se.

Volto, então, muito devagar até ao meu poiso onde vou esperar que flautas e magias despertem a natureza e a vida e me tragam todas as cores que há no mundo.



[Abaixo da vida branca aqui abaixo, poderão ler mais um belo poema de Armando Silva Carvalho e, logo a seguir, abrimos a semana dedicada a Antonio Salieri]



O mundo branco visto da minha janela num dia branco


                         Meus Deus, a natureza é branca.
                         E envolve as massas de barreiras sonoras
                         que a boca tenta soerguer num compasso de guia
                         pelos caminhos do texto:
                         a cada palavra o seu sinal de cor,
                         a triste magia de buracos e dedos, de flautas
                         e serpentes.



['42 canções entre 2 portas, nº36', de Armando Silva Carvalho in 'De Amore']

Antonio Salieri - Cenas finais da Ópera Tarare


05 julho, 2012

Só mais um dia, um dia luminoso e barulhento por mim a dentro


O tempo passa por mim. O tempo passa pela minha casa. Junto à varanda a parede devia ser pintada, ali o fio descolou-se e, à medida que o tempo passa, uma ruga, um desânimo que vai entrando, como um fungo, no espírito da casa.

Junto ao rio, a tinta das casas também vai caindo e várias camadas de cores vão ficando à vista. A superfície da parede vai estalando, as rugas estão bem visíveis, tantos anos, tanta gente, gerações por aqui passando, e as casas permanecendo, velhas e dignas.

Mas eu gosto de ver o efeito do tempo que passa. Ficam suaves as pessoas, ficam muito belas as casas.

Nesta parede que aqui vos mostro há cores a que o tempo eliminou a petulância, cores antigas, há musgos agora já secos mas, no inverno, reverdecerão e, até, flores. O tempo vai aqui deixando fragmentos de terra, o vento vai trazendo sementes e, nos desvãos surgem inesperadas flores do campo. Aqui à beira do rio, nas paredes das casas nascem flores que trazem a luz amarela dos campos douradas pelo sol.

Por isso, não me falem em ter tudo limpo e assético, não me falem em arrumações artificiais, não me falem em casas e em ruas sem o som buliçoso de crianças, em mesas sem migalhas de pão, em casas sombrias e melancólicas, não me falem em corações frios.

Não, deixem que as rugas apareçam, que a pintura estale, que as crianças corram e riam, que as casas de desarrumem, que as palavras nasçam livremente - disso se faz a felicidade das casas e das pessoas.



[Logo abaixo da parede florida, poderão ver um poema de um Poeta cujas palavras habitam este espaço.  A seguir, estamos a concluir 'o ciclo' dedicado a Manuel de Falla.]



Parede do casario do Ginjal - a beleza do tempo que passa



                        "Só mais um dia,
                        um dia luminoso e barulhento
                        por mim a dentro,
                        um dia bastaria,
                        em prosa que fosse.

                        Mas dá-me para a melancolia,
                        para a limpeza, para a harmonia,
                        impacientam-me as migalhas
                        de pão sobre a mesa, as falhas
                        da pintura do tecto,
                        as vozes das visitas, despropositadas,
                        sinto-me sujo como um objecto,
                        desapegado, desarrumado.

                        Trocaria bem esse dia
                        por um pouco de arrumação
                        - no quarto e no coração."



['Cuidados intensivos, V' de Manuel António Pina in 'Todas as palavras - poesia reunida']

Manuel de Falla - Alexia Mancovskaya, acompanhada por Grant Dowse na guitarra, interpreta 'El Paño moruno'


04 julho, 2012

O vazio que se segue à ideia, a desordem prenunciada


Caminhávamos, os dois, pela estreita rua rente ao rio. Estava sol. E o rio abria-se à luz, e os pássaros agitavam-se cheios de calor, mergulhavam aflitos, sacudiam a plumagem e voltavam a voar.

Que calor. Os gatos escondiam-se junto à raiz das árvores, ali onde a frescura sobe da terra, e assim ficavam, deitados à sombra de olhos fechados.

E nós seguíamos, rente às paredes, procurando também alguma sombra, com vontade de mergulhar também nas águas azuis do rio.

E, então, passámos aqui, onde uma longa e estreita escadaria desce da Boca do Vento até à beira do rio, onde o casario branco se encalora de amarelo tórrido, onde as paredes se enfeitam de vasos, onde as mesas se vestem de verão. Que cores luminosas, que alegria que isto é, disse-te eu. É o verão, respondeste. 

Passaste-me o braço pelos ombros e eu tinha calor demais e tu disseste que eu devia ser ave marinha ou peixe ou sereia para poder viver dentro do mar. E eu disse: ora sente a minha pele, sente bem, passa a tua mão por baixo do meu vestido.

Fizeste-o e paraste, olhando-me espantado. O meu corpo estava, pois, coberto de grandes escamas madre pérola, lâminas de luz. 

E eu disse-te: tira as minhas escamas douradas, espalha o caos na minha pele, mergulha até atingires o vazio

Riste-te. Já me conheces, palavras assim são sempre o prenúncio daquela desordem onde me sinto melhor. Riste-te e, ao ouvido, disseste-me: não perdes pela demora.



[Abaixo do casario enfeitado de verão, poderão ver, meus Caros Leitores, mais um daqueles poemas de José Alexandre Caldas Ribeiro em que as palavras se ajeitam de uma forma aparentemente desordena, numa toda poética que me encanta. A seguir, temos a música de Manuel de Falla para as noites de verão nos jardins de Espanha]



Esplanada de um dos dois restaurantes da beira do rio, junto ao Jardim do Ginjal


                             A ideia de um amarelo tórrido
                             invade o prenúncio
                             A chegada de um vagão cor de ferrugem
                             acelera a ideia. Passa-o
                             Chegada quase a oferecer
                             Mais tarde, muito mais tarde
                             aguardara vista da ideia. Em vão
                             Compreendera a superfície da cor
                             a fina película que escama ao tacto
                             o vazio que se segue à ideia
                             a desordem prenunciada



[Poema da pag.70 de José Alexandre Caldas Ribeiro in 'A água que nos move']

Manuel de Falla - Julio Jesús Nicolás no piano com a Jóven Orquestra Provincial de Málaga interpretam 'Noches en los Jardines de España'


03 julho, 2012

Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis e cruéis


O homem vagueava na rua. Ia sozinho, sem pressa. Chegou-se junto ao cais, sentou-se a ver o rio que ia negro numa noite que estava negra, apenas algumas luzes ao longe. O homem olhava e talvez não visse nada, talvez olhasse apenas a sua própria memória, talvez pensasse na sua vida, não sei.

Eu via-o de longe, gosto de andar de noite, gosto de ver os gatos que saltam das varandas vazias e se esgueiram até à beira do rio, gosto de ver os barcos que atravessam a escuridão, gosto de ver as pessoas apressadas, com sacos nas mãos que, num instante, desaparecem no meio da noite, não deixando qualquer rasto. E, então, eu estava ali, transparente, vendo este homem que percorria os caminhos da beira do rio, da beira da noite.

Depois, ele levantou-se, pôs as mãos nos bolsos, abeirou-se ainda mais do rio e ali ficou, de pé, altivo, cabeça erguida, desafiando a largueza do espaço, aspirando o ar fresco e nocturno.

Algum tempo depois, baixou a cabeça e dirigiu-se à paragem de autocarros. Sentou-se, porte humilde, paciente, cansado. O autocarro não vinha mas a sua paciência manteve-se. Depois mudou de posição, descontraíu-se e ficou a olhar a noite, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido e só sobrasse a noite.

Percebi que aqueles breves instantes junto ao rio tinham sido o seu momento de liberdade e que estes momentos de espera eram o seu momento de descanso, de meditação. Que vida será a deste homem? Quem seria este homem se pudesse ter outra vida?



[Abaixo da fotografia deste homem, poderão ler mais um poema de Luís Filipe Castro Mendes, poeta com lugar cativo neste cais. Logo a seguir, dois belos espíritos juntam-se: Teresa Berganza e Manuel de Falla]



Na paragem de autocarro, numa noite fresca

             

                Pouca realidade nos cerca de noite,
                quando todos se calam à nossa volta
                e as coisas se acomodam no escuro, como se fosse o seu natural.

                E nós, que deixámos toda a espantosa realidade do mundo
                amassar-nos até aos ossos,
                olhamos para a noite com a estranheza
                de não podermos mais ser nós próprios.

                Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis
                e cruéis.



               ['Noite impassível' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']

Manuel de Falla - Teresa Berganza interpreta Nana


02 julho, 2012

No retrato em que estás nua, com a mão a esconder o rosto


Quero sentir o sol na tua pele, na minha pele. Que se soltem as doces gotículas do teu corpo salgado e doce, que se soltem que eu quero bebê-las. Deita-te comigo aqui ao sol. Deita-te no meu ombro e deixa que o rio corra aqui sob os nossos pés, tapete viajante; deixa que o sol doure a tua pele transpirada, deixa, não te mexas, meu amor.

Está calor e o teu corpo abre-se ao sol que cobre e afaga e beija o teu corpo. Conheço bem os gostos do teu corpo. Tenho os olhos fechados mas poderia descrever a forma como, depois de cobrires o rosto com a mão, com uma delicadeza muito feminina, as juntas sob os seios, como arqueias as pernas macias, como passas vagarosamente a língua pelos lábios que ficam secos. 

E, então, eis que passa um veleiro e depois outro. Têm velas brancas e atravessam, pequena aves marinhas, suaves pétalas de sol, este rio que brilha tanto que, se abrisses os teus olhos, eu poderia ver neles, reflectido, este brilho azul com sabor a maresia.

Se abrisses os olhos e fizesses um gesto, bastaria apenas um gesto, talvez até apenas um sorriso, um dos marinheiros dos veleiros brancos viria buscar-te. Gostam de deusas louras de pele branca os marinheiros tisnados pelo sol, habituados a lidar com as aves, com as sereias. Viria buscar-te, ah disso eu não tenho dúvida, e levar-te-ia rio adentro para o ajudares na navegação, deusa, mil vezes minha deusa.

Mas, felizmente, não abres os olhos, felizmente não partes com um dos marinheiros. Ficas comigo, aqui, doce, ao sol. E eu fico então a imaginar-te, quando chegarmos a casa, despida, elegante, de pé contra a luz da rua, de frente para mim, minha deusa, minha amada. E eu, meu amor, para te homenagear ler-te-ei um poema daquela que há oito anos se foi levada pela luz, como se fosse com o rio viajante, com o veleiro de asas brancas, a nossa querida Sophia.



[Logo abaixo da imagem poderão ler mais um dos muito belos poemas do mais recente livro de Nuno Júdice. Imediatamente a seguir mais um belo momento musical da autoria de Manuel de Falla, um momento de grande amor à música]



Em Lisboa, sobre um Tejo azul brilhante, de frente para um 'outro lado' que se estende até à serra de Palmela



                             No retrato em que estás nua, com a mão
                             a esconder o rosto, passa um lento barco de
                             velas brancas como as pétalas que se desprendem
                             do sol. Um só remador o conduz, guiando
                             o seu rumo como se não fosses tu o seu último
                             porto; mas dobras-te ligeiramente para um fim
                             de verso que o vento arrastou até ao limite
                             da página, como se quisesses ajudar
                             essa navegação por entre as ondas tempestuosas
                             dos cabelos louros. Há muito o sol desceu
                             sobre esta sala; e quando te encostas à falsa
                             coluna de um templo vago, és tu a deusa,
                             ou essa a quem ela deu o seu corpo.





['Cara de Mallarmé a Méry Laurent' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']

Manuel de Falla - Daniel Barenboim conduz a Chicago Simphony Orchestra na interpretação de 'El Amor Brujo' ('Danza Ritual del Fuego')


01 julho, 2012

Subitamente saíram da sombra. Vinham de cara ao sol


Fui até à beira do rio, de um e outro lado. Azul tão escandaloso já há uns dias que o não via. As águas corriam ligeiras, naquele brilho próprio de quem se despreocupa facilmente. A cidade toda ela colorida, uma inocência aquelas cores infantis, o amarelo, o rosa, o azul, os telhados muito bem desenhados, as chaminés, tudo banhado de luz, tudo perfeito, o casario chegando-se também até à beira do rio.

Que saudades eu já tinha. Fico, então, imóvel, silente, olhando e respirando. Este é o ar de que eu preciso para viver.

Não penso em nada, estou apenas ali, de frente para esta beleza que há muitos dias não via assim, de tão perto, e não penso, não falo, apenas olho, apenas respiro.

Depois vejo que, em direcção ao mar, sobe um veleiro, uma barca. Talvez traga guerreiros. Vejo-os, vêm de cara ao sol, falam alto, sinto-lhes aquela alegria vitoriosa de quem vem de longe para defender uma cidade.

Em silêncio, avança o veleiro que transporta os guerreiros que gritam palavras talvez de combate. Escuto. E então ouço: 

Trago em mim um exército perdido
algures no meio de uma estrofe
da saga escrita em língua desaparecida.

Depois o vento leva as palavras, e só consigo ouvir, mais:

A escrita é essa navegação

Sigo ao longo do rio, tentando perceber o que dizem mas já não consigo. Quando me afasto parece-me escutar:

O vento sopra no vento.

Penso, então, que estes devem ser os guerreiros que vêm de longe para, junto da grande cidade, defender, morrer se necessário for, a palavra, a poesia, a maravilhosa língua portuguesa.



[Bom, depois disto deveria aqui colocar também um compositor português. Mas isso fica para outro dia. Logo a seguir ao belo poema de Manuel Alegre, dá-se início à semana dedicada ao compositor Manuel de Falla - e não tem nada a ver com o facto de, no momento em que escrevo, a Espanha estar a bater a Itália na Final do Euro 2012]



Hoje de manhã, o Tejo e Lisboa


                         Subitamente saíram da sombra.
                         Vinham de cara ao sol
                         com suas armas cintilantes
                         soltando gritos de combate
                         para morrer diante da cidade
                         que ninguém sabe ao certo onde ficava
                         e talvez fosse apenas
                         uma palavra.
                     
   
                   ['Os guerreiros' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']


Nota: Os excertos a itálico no meu texto são versos de poemas do mesmo livro.

Manuel de Falla - Enrique Asensio dirige a Orquestra e Lucero Tena nas castanholas interpretam 'La vida breve'