Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 maio, 2011

Um dia em que não há mais passado para contar nem mais futuro para viver

Qual de nós partiu? Qual ficou?

Sabíamos que não haveria futuro e sabíamos que um dia o passado seria esquecido.

Esse dia chegou há muito - e é tão injusto que isso tenha acontecido.

Mas para sempre ficará a casa, o limbo em que apenas nós dois existíamos, em que os nossos corpos gostariam que não anoitecesse.

Há pouco, ao entardecer, no Ginjal

E chega um dia em que reconhecemos
finalmente
a injustiça das palavras -
exactamente as mesmas
para quem vai e para quem fica

um dia
em que não há mais passado para contar
nem mais futuro para viver

apenas uma velha cantiga a embalar
uma casa desaparecida
e este limbo ocasional
onde o corpo
espera que anoiteça


(Poema de Alice Vieira in 'O que dói às aves')

Oquestrada interpretam Senhora do Tejo (Sete Colinas)

Com cheirinho a marchinha popular, um grupo bem português, com uma certa alma tricana, de beira de rio, os Oquestrada.



(Não consegui descobrir a letra)

30 maio, 2011

Uma veloz melancolia sopra no jardim do amor breve

Em boa verdade direi que nunca nos iludimos, sabíamos que o brilho do amor não podia durar muito.

Em boa verdade sabíamos que não poderíamos jamais passear num jardim.

Em boa verdade sabíamos que depois do nosso breve amor, depois da melancolia, a vida prosseguiria.

No jardim do Ginjal, mesmo em cima do Tejo

Todos recomeçaram suas vidas,
ou suspenderam-nas de novo; breves
foram as ilusões de se poder
o brilho do amor talvez prender

Uma veloz melancolia sopra
no jardim do amor breve:
tão depressa regressa a solidão,
forma da vida, à vida que prossegue


('Forma de Vida' - depois de ver Vicky Cristina Barcelona - de Gastão Cruz in 'Poemas com cinema')

Janita Salomé interpreta Redondo Vocábulo

Uma vez mais coloco aqui  o 'Redondo Vocábulo', uma das mais belas canções de José Afonso. A voz rendilhada de Janita Salomé (na expressão de António Lobo Antunes) fica muito bem nos degraus de Laura.



Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincando e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa


(Letra de 'Redondo Vocábulo' da autoria de Zeca Afonso)

29 maio, 2011

Vamos dar início à simples idade, música suave, simplicidade

O que nos deu o tempo, sabes dizer?

Deu-nos momentos perfeitos, secretos, sagrados, não foi?

A via que percorríamos fechou-se mas, agora que vives apenas na minha memória, continuas a fazer-me sorrir.

Já não espreitas as minhas pernas, já não fazes de tudo para lhes poder tocar, mas é ainda o teu sorriso que eu guardo dentro de mim, são ainda os dias de música suave, em que não tínhamos idade, em que nos isolávamos dentro do tempo, que eu desveladamente guardo no meu coração.  

Através de um buraco num velho guindaste no Ginjal, avisto um veleiro que atravessa o Tejo

Encaro o tempo difícil de passar, fantasio
sobre o que ele dá, sobre o que ele tira
e não dá mais ou volta ainda a trazer
Olho ansioso o tempo, sinto-o como um obstáculo
na via, passagem de nível estupidamente fechada
Soa a campainha da porta, o que trazes de mais
nu, as pernas, é o que vejo em primeiro lugar
musculadas, decididas. Vamos dar início
à simples idade, música suave, simplicidade
fazer no tempo um buraco, esconder-nos dentro


('Encaro o tempo difícil de passar' de Rui Caeiro in 'O Quarto Azul e outros poemas')

NB: Recomenda-se a leitura do poema enquanto se ouve o 'Não desistas de mim' de Pedro Abrunhosa (post abaixo)

Pedro Abrunhosa interpreta Não desistas de Mim

Uma das grandes canções de amor em língua portuguesa interpretada pelo autor, o sedutor Pedro Abrunhosa.

A vossa atenção por favor.


A porta fechou-se contigo
Levaste na noite o meu chão
E agora neste quarto vazio
Não sei que outras sombras virão
E alguém ao longe me diz

Há um perfume que ficou na escada
E na TV o teu canal está aberto
Desenhos de corpos na cama fechada
São um mapa de um passado deserto
Eu sei que houve um tempo em que tu e eu
Fomos dois pássaros loucos
Voamos pelas ruas que fizemos céu
Somos a pele um do outro

Não desistas de mim
Não te percas agora
Não desistas de mim
A noite ainda demora

Ainda sei de cor o teu ventre
E o vestido rasgado de encanto
A luz da manhã e o teu corpo por dentro
E a pele na pele de quem se quer tanto

Não tenho mais segredos
Escondi-me nos teus dedos
Somos metades iguais
Mas hoje só hoje
Leva-me para onde vais
Que eu quero dizer-te

Não desistas de mim
Não te percas agora
Não desistas de mim
A noite ainda demora

E não desistas de mim
Não te percas agora


(Letra de 'Não desistas de mim' da autoria de Pedro Abrunhosa)

26 maio, 2011

E eu permaneceria acordado e em prosa, habitando-te como uma casa ou uma memória

Através dos poemas, habito a tua vida tal como tu habitas a minha memória.

O mundo dobrou-se há tanto tempo que já não sei se exististe, se eras mesmo tu ou se te inventei para viveres dentro de mim, sentado à minha frente, sorrindo, olhando para mim.

No cais de Cacilhas, o Tejo ali e Lisboa do outro lado

Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exacta,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória.


 
Manuel António Pina, in Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança

Maria Bethânia interpreta "De todas as Maneiras" e "Estranha Forma de Vida"

A querida Maria Bethânia, a única Maria Bethânia, interpreta duas belíssimas canções. A primeira do lado de lá, a segunda do lado de cá.


De todas as maneiras que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras feitas pra sangrar
Já nos cortamos
Agora já passa da hora, tá lindo lá fora
Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão

De todas as maneiras que há de amar
Já nos machucamos
Com todas as palavras feitas pra humilhar
Nos afagamos
Agora já passa da hora, tá lindo lá fora
Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão

(Letra de "De todas as maneiras" de Chico Buarque)

25 maio, 2011

Quando me olhas de olhos como estrelas, minha vida

Assim me olhavas, como se dos meus olhos te viesse a luz, como se a tua vida fosse quase só eu.

Mas foram parcas as horas que o destino nos deu, o céu fechou-se para nós.

Avistado do Ginjal, na outra margem, veleiro quase só mastros

Impenitente criador de mastros,
quanto a velas nem vê-las
- mais que de fugida
quando me olhas de olhos como estrelas,
minha vida.

Dos astros
desço então à hora parca
que o destino nos deu:
e fecho a arca,
e tapo o céu.


(de Pedro Tamen in Relâmpago, Nº27 de Outubro de 2010)

Os Toranja interpretam Laços

Nesta altura Tiago Bethencourt ainda integrava os Toranja e esta é uma das belas canções do seu repertório.


Andamos em voltas rectas
Na mesma esfera
Onde ao menos nos vemos
Porque o fumo passou

A chuva no chão revela
Os olhos por trás
Há que levar o restolho
Do que o tempo queimou

Tens fios de mais
A prender-te as cordas
Mas podes vir amanhã
Acreditar no mesmo deus

Tens riscos de mais
A estragar-me o quadro.
Se queres vir amanhã
Acreditar no mesmo deus

Devolve-me os laços, meu amor!
Devolve-me os laços, meu amor!
Devolve-me os laços, meu amor!
Devolve-me os laços...

Andamos em voltas rectas
Na mesma esfera
Mas podes vir amanhã
Se queres vir amanhã
Podes vir amanhã

Tens riscos de mais
A estragar-me a pedra
Mas se vieres sem corpo
À procura de luz

Devolve-me os laços, meu amor!
Devolve-me os laços, meu amor!
Devolve-me os laços, meu amor!
Devolve-me os laços...
meu amor... meu amor... meu amor...


(Letra de 'Laços' dos Toranja)

24 maio, 2011

Esquece-te de mim, Amor, das delícias que vivemos

Esquece-te. Ou não.

À beira do Tejo, no Ginjal, casal conversa

Esquece-te de mim, Amor,
das delícias que vivemos
na penumbra daquela casa,
Esquece-te.
Faz por esquecer
o momento em que chegámos,
assim como eu esqueço
que partiste,
mal chegámos,
para te esqueceres de mim,
esquecido já
de alguma vez
termos chegado.

(António Mega Ferreira, in  Os Princípios do Fim)

Mariza canta Barco Negro

Mariza, a grande, quase mamã, interpreta aqui uma das grandes canções portuguesas - de sempre.

Inicialmente cantada por Amália, com letra de David Mourão-Ferreira, o eterno Barco Negro.


De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:

São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]

No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo

(Letra de 'Barco Negro' da autoria de David Mourão-Ferreira)

23 maio, 2011

Não contes do meu vestido que tiro pela cabeça

Não contes, é o nosso segredo.

No Ginjal, emoldurados pelo tabuleiro da Ponte, jovem casal passeia bem à beirinha do Tejo

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar.

(Segredo de Maria Teresa Horta, o poema adequado para se ler enquanto se ouve 'O meu amor' no post abaixo)

Vitorino e Elba Ramalho interpretam 'O meu amor'

Uma canção especial para mim. Dela retirei o nome do meu outro blogue, 'Um jeito manso'.

A interpretação que prefiro é a da Maria Bethânia mas, apesar disso, aqui vos deixo o Vitorino e a Elba Ramalho.


O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que me deixa maluca, quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba mal feita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios, de me beijar os seios
Me beijar o ventre e me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo
Fosse a sua casa

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

(Uma vez mais, 'O meu amor', composição de Chico Buarque)

22 maio, 2011

Um silêncio, um olhar, uma palavra

No jardim do Ginjal, sob as árvores, casal passeia tranquilamente

Um silêncio, um olhar, uma palavra:
nasceste assim na minha vida,
inesperada flor de aroma denso,
tão casual e breve…

Já te visionara no meu sonho,
imagem de segredo esparsa ao vento
da noite rubra, delicada, intacta.
E pressentira teu hálito na sombra
que minhas mãos desenham, inquietas.

Existias em mim… O teu olhar
onde cintila, pura, a madrugada,
guardara-o no meu peito, ó invisível,
flutuante apelo das raízes
que teimam em prender-te, minha vida!


(Retrato de Luís Amaro in 366 poemas que falam de amor de Vasco da Graça Moura)

19 maio, 2011

Cuidado

O amor é um pequeno animal que tem que ser alimentado carinhosamente. Por isso, às vezes o pequeno animal torna-se uma teia que, pouco a pouco, se vai desfazendo.

No Ginjal, ao entardecer, uma luz fantástica, mulher e homem de costas viradas

Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
que se desfia
pouco a pouco. Guardo
silêncio
para que possam ouvi-lo
desfazer-se.

(de Casimiro de Brito in Poemas de Amor, Antologia de poesia Portuguesa)

17 maio, 2011

Nós temos cinco sentidos

Ah como precisaríamos agora de um par de grandes asas para nos elevarmos acima deste malsão dia a dia...!

Sobre o Tejo, em equilíbrio, Lisboa ali ao pé, Ginjal do lado de cá, homem avança (sem asas)

Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio d'asas.

- Como quereis o equilíbrio?


(Hai-kai de David Mourão-Ferreira in A arte de amar)

Rui Veloso interpreta Porto Sentido

Uma letra e uma música especiais numa canção de amor a uma cidade. Nesta gravação, que é uma gravação especial, Rui Veloso supera-se (e temos oportunidade de ver algumas outras caras conhecidas)


Quem vem e atravessa o rio
Junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende ate ao mar

Quem te vê ao vir da ponte
és cascata, são-joanina
dirigida sobre um monte
no meio da neblina.

Por ruelas e calçadas
da Ribeira até à Foz
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.

E esse teu ar grave e sério
dum rosto e cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria

[refrão]

Ver-te assim abandonada
nesse timbre pardacento
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento

E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa

(Letra de 'Porto sentido', da autoria de Carlos Tê)

16 maio, 2011

É em dias de maior paixão que pelo coração se chega à pele

O mar irrompe, a maresia toca-nos, chega-nos até à pele, entra no coração de quem por aqui anda.

Gaivotas, ondas, árvores, barcos, vento, sol e nuvens, pescadores, caçadores de imagens, casais, são uma só realidade.

Que felicidade imensa estar aqui.

No jardim do Ginjal, jovem casal isolado do mundo, aprende os caminhos do amor

Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.


(Paixão de Luís Miguel Nava)

Jorge Palma interpreta "Dormia Tão Sossegada" ao vivo no Coliseu

Jorge Palma é um dos grandes da música portuguesa, autor de grandes canções, grande intérprete.

Aqui numa canção com uma letra cheia de ternura.


Dormia tão sossegada
Pernas tão tenras na cama
Eu fui-me chegando a ela
Quis partilhar uma chama

Dormia tão sossegada
Os dedos tão inocentes
Eu desejei-a tão forte
Os preconceitos ausentes

E a lua estava lá fora
Para além do firmamento
A fingir que não sorria
Desse espantoso momento

Dormia tão sossegada
Os lábios entreabertos
A calma em forma de sonho
Com os sentidos despertos

Ela ficou sossegada
Depois da minha visita
A desenhar os lençóis
Ficou ainda mais bonita

E a lua estava lá fora
Para além do firmamento
A fingir que não sorria
Desse espantoso momento

Nunca ninguém me tinha dito
Assim tão bem
Como alguém pode ser tão igual
Independentemente donde vimos,
Da cor da nossa pele,
Da nossa religião,
Do nosso dinheiro,
Da nossa moral

E a lua estava lá fora
Para além do firmamento
A fingir que não sorria
Desse espantoso momento
Desse espantoso momento
Desse espantoso momento.
(Letra de "Dormia tão sossegada" de Jorge Palma)

15 maio, 2011

A meu favor tenho o teu olhar - do Poeta Manuel António Pina, prémio Camões

Com os meus parabéns tardios, aqui presto a minha homenagem ao escritor Manuel António Pina. O prémio Camões para este homem humilde, culto, despojado - uma justíssima atribuição. Obrigada pelas crónicas, pelos poemas, por palavras tão belas como as deste poema.

Que tenhamos sempre junto de nós alguém que afaste de nós o pecado da infelicidade.

No Ginjal, ao entardecer, casal passeia, conversando

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

(Completas de Manuel António Pina, in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância” )

José Afonso interpreta "Traz Outro Amigo Também"

Um dos nomes maiores da música portuguesa, uma companhia para sempre. Zeca, o grande compositor. Aqui interpreta uma das suas músicas icónicas: Traz outro amigo também. Um amigo é sempre bem vindo e o Zeca também.


Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja benvindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

(Letra de 'Traz outro amigo também' de José Afonso)

11 maio, 2011

Depois de ti o dilúvio

Junto ao Tejo, sózinha, mulher medita, olha o rio, Lisboa

Depois de ti
o dilúvio: esgotaram-se as imagens
e não posso mudar o que diziam:

há um esvaziamento, uma degradação,
que em pouco tempo tornam
o real absoluto no real possível:

e nunca mais hei-de sentir o mundo
tão alto como os versos e não o contrário,
e nunca mais poderei dizer a ninguém:

os teus olhos são tão belos como os teus olhos.


('Depois de ti', belo poema de amor e saudade de Pedro Mexia in 'Menos por Menos')

Jorge Palma interpreta 'Estrela do mar'

Uma líndissima canção, uma bela música, uma maravilhosa interpretação: Jorge Palma e 'Estrela do Mar'

A vossa atenção, também, para a letra (abaixo): linda.


Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte
E em que o sono parecia disposto a não vir
Fui estender-me na praia sozinho ao relento
E ali longe do tempo acabei por dormir

Acordei com o toque suave de um beijo
E uma cara sardenta encheu-me o olhar
Ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
Ela riu-se e disse baixinho: estrela do mar

Sou a estrela do mar
Só ele obedeço, só ele me conhece
Só ele sabe quem sou no principio e no fim
Só a ele sou fiel e é ele quem me protege
Quando alguém quer à força
Ser dono de mim

Não se era maior o desejo ou o espanto
Mas sei que por instantes deixei de pensar
Uma chama invisível incendiou-me o peito
Qualquer coisa impossível fez-me acreditar

Em silêncio trocámos segredos e abraços
Inscrevemos no espaço um novo alfabeto
Já passaram mil anos sobre o nosso encontro
Mas mil anos são poucos ou nada para a estrela do mar

(Letra de 'Estrela do Mar', composição de Jorge Palma)

10 maio, 2011

Ao desejo, à sombra aguda do desejo, eu me abandono

No jardim do Ginjal, grande barco no Tejo, a ponte Vasco da Gama ao fundo: tranquilidade  e beleza

Ao desejo,
à sombra aguda
do desejo,
eu me abandono.

Meu ramo de coral,
meu areal,
meu barco de oiro,
eu me abandono.

Minha pedra de orvalho,
meu amor,
meu punhal,
eu me abandono.

Minha lua queimada,
violada,
colhe-me, recolhe-me:
eu me abandono.

('Ostinato' de Eugénio de Andrade in Antologia Breve)

Carlos Martins e Bernardo Sassetti interpretam "Ornithology"

Hoje há jazz. E tão novinhos que eles eram aqui...

09 maio, 2011

Também eu estava perdido e encontrar-te é milagre

Perdidos andamos? Tu andas? E eu não? Que luz nos guia? Nenhuma. Há guião na nossa vida? Acho que não, a mim nada me guia. E nem sei se quero encontrar-te. Ficaria ainda mais perdida.

No jardim do Ginjal, o Tejo e a ponte avistam-se por detrás de uma árvore de etérea ramagem

Também eu estava perdido.
Não há luz que me guie
a não ser o fulgor
dos olhos que mal vejo
e de meia lua a pique.
Nada há em que me fie
a teia de uma vida
que já nem é comprida
e menos que cumprida.

Também eu estou perdido,
mas no escuro encontrar-te
é milagre, não arte.

('10. Ele' de Pedro Tamen in 'Um teatro às escuras')

Cuca Roseta interpreta "Porque Voltas de que Lei"

Uma vez mais a Cuca Roseta, a menina da voz cristalina com o fado na alma.  Aqui interpreta um fado com música de Mário Pacheco e letra de Amália Rodrigues.


Por que voltas de que lei
Vem este sentir profundo
Por te saber como sei
Me sinto dona do mundo

Por que espada de que rei
Meu amor é fogo posto
És tanto de quanto amei
Que és tudo de quanto gosto

Por este amor que te tenho
Por ser assim como sou
És inferno donde venho
És o céu para onde vou

Por que voltas de que lei
És tudo de quanto gosto
Me perdi e me encontrei
Nas voltas que tem teu rosto

Por que voltas de que rei
Em meu peito teu desenho
És tanto de quanto amei
Que és todo o mundo que tenho

E de tão rica que estou
Nunca tão pobre fiquei
Por ser assim como sou
E te saber como sei

(Letra de 'Porque voltas de que lei' da autoria de Amális Rodrigues)

Mais cálido e infindo é o espaço

Não sei se sou livre ou se vivo aprisionada na minha liberdade. Às vezes quanto fogo a impelir-me a furar este meu imenso espaço. Às vezes, pela alvorada.

No Ginjal, hoje, numa manhã limpa, gaivota orgulhosa contempla o Tejo, Lisboa, o espaço

Mais cálido e infindo para a ave
é o espaço onde vive aprisionada
se se evola em seu canto
- no fogo que a incita ao colher a alvorada.

(XIV de José Bento in Sítios)

08 maio, 2011

Imortal de Rodrigo Leão com Ângela Silva

Dada a agitação política dos últimos dias, andei mais pelo Um jeito manso do que por aqui. Hoje, ao regressar, tenho que tentar redimir-me e, em minha opinião, nada melhor do que com a música do genial Rodrigo Leão. Imortal é uma composição líndissima e, a melhorá-la, se, neste contexto, faz sentido falar assim, temos Ângela Silva, jovem soprano com um curriculum já muito relevante. A vossa atenção por favor, o momento seguinte requer algum recolhimento.

02 maio, 2011

Vão despertando aos poucos

Aos poucos fui despertando. Como se antes vivesse num sono, num sonho. Com o sol, com o tempo, o sonho, que era prazeiroso, amoroso, foi-se desfazendo. Sabíamos que não podia durar.

No Ginjal, dois amigos conversam, ele, quase indiferente, arranjando o nylon da rede, ela, sorrindo, fazendo-lhe boa companhia

Vão despertando aos poucos
à medida que a vontade
o som e o sol
enchem o espaço.
Vão despertando aos poucos,
um a um,
lentos, prazeirosos, sensuais.
Vão despertando aos poucos
de um sono tão profundo,
morno, embalado.
Vão despertando aos poucos
do que sabiam não durar
mais do que uma noite.

('Vão despertando', poema de Patrícia Aguiar in '190 minutos aqui', livro que tem ilustrações de Marisa Benjamim)

Misia interpreta Duas Luas

Senhora de uma forte e não consensual personalidade, Mísia tem uma carreira essencialmente reconhecida em França.

A sua voz não tem uma musicalidade pela qual eu morra mas, ainda assim, reconheço-lhe o mérito da persistência e o gosto pela poesia portuguesa.


Eu vivo com duas luas
Delas me fiz companhia
Andam cruzadas as duas
E nenhuma me alumia
 
Atrás da minha janela
Nos lençóis onde me deito
Há uma lua que vela
Escondida no meu peito
 
A outra dizem que é tua
Nasceu no teu coração
É por isso que esta lua
Só brilha na tua mão
 
Até quando te insinuas
Quando me chamas baixinho
Eu vivo com duas luas
Cruzadas no meu caminho.
 
(Letra de Duas luas, composição de João Monge e José Magala)